Era uma vez...

terça-feira, 19 de maio de 2009 - Postado por Luiza Drumond às 21:03

"Era uma vez...era uma vez. Era uma vez o quê, meu Deus? Era uma vez quem? E quando, e onde era uma vez? É tão difícil escolher, é tão difícil começar. Deixa eu ver, quem sabe aqui tem alguma idéia... Era uma vez... a Groelândia. Muito gelo, muito branco, muito pinguim, muito esquimó, muito iglu, muito frio. Ah, muito chato. Nem um pouco dramático. Deixa eu tentar outra vez. Era uma vez... O Saara. Muita areia, muito sol, muito camelo, muito calor, muita seca. Nossa, que sede que me deu. Era uma vez... Eu. Claro, tem que ser alguma coisa que eu conheça bem. Eu, então. Faz quase dezenove anos que eu convivo comigo mesma. Alguma coisa devo conhecer. Sim, é isso mesmo. Eu. Por que não? Afinal, eu me acho interessantezinha. Era uma vez uma atriz. Muito palco, muito ensaio, muita luz, muita coxia, muito bastidor, muita platéia - graças a Deus -, muita emoção, muito sonho, muita ilusão. Muito... Muito "Era uma vez." Ladies and gentlemen, eu sou uma atriz. Meu nome é Carlota. Como vocês podem ver, eu sou mais ou menos alta, meio magra, um pouco tímida. Tenho muitos cabelos, mas não muitos músculos, mas acho que sou.. Simpática, engraçada. Eu conheço bem meu corpo, sei me movimentar, fazer gestos dramáticos, divertiso, estranhos, assustadores. Eu também sei cantar, sei dançar, mas sei principamelmente representar. Quando represento, eu continuo sendo eu, mas também, ao mesmo tempo, passo a ser um outro. Eu não seria uma atriz se não conseguisse ser também esse outro. E não estou falando do outro que me assiste, embora eu também seja esse, porque ele sempre se vê em mim, mesmo quando não gosta do que vê. Falo principalmente daquele outro em que eu me torno, que eu incorporo, que eu me transformo quando estou sendo uma atriz. O personagem, é dele que eu falo. Uma atriz não é uma atriz sem um personagem. Bom, então, agora, aqui... será que eu não sou um atriz? Será que eu não sou eu? Será que eu não sou nada, meu Deus? Será que estou muito chata? Será que estou pirando? Onde está o personagem? Onde está o outro? Ele é essencial para minha sobrevivência! Onde está o personagem? Eu não tenho sentido sem o personagem! Eu vou enlouquecer sem o personagem! Eu preciso do outro! Querem acabar comigo! Isso é um complô! Eu processo! Eu mando sustar o cheque! Susta, susta! Eu quero porque quero o personagem! Me chama a produção! Cadê meu celular?"



Caio Fernando Abreu